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Inicio com um breve comentário sobre a imagem do naufrágio, uma imagem arcaica e complexa que se cristalizou na arte do  Ocidente. Desde os naufrágios bíblicos, gregos e latinos, São Paulo, Ulisses, Enéas, até a literatura e pintura modernas, a imagem do naufrágio deixa um lastro na história da arte. Quando um artista deseja explorá-la, já traz todo um repertório atrás de si. Em arte, nunca se trabalha a partir do nada. Não existe a tela virgem, o papel em branco. Há um substrato na memória visual do artista, ele já está capturado por uma ideia fixa, por um imaginário, pelas numerosas referências do que já leu, já viu, do que o impactou em suas próprias experiências poéticas. A imagem do naufrágio – por seu conteúdo catastrófico ou mesmo trágico - não dará ao artista um rumo seguro mas sim um ponto de partida para a deriva, um trampolim para o mergulho e uma plataforma de sobrevivência. A mesma imagem, o naufrágio, concentra uma potência metafórica incalculável, atuando sobre o imaginário, evidenciando sua produtividade poética quando se rebate naquilo que há de mais pessoal, intransferível, que é o encontro de uma imagem com a força imaginante do artista.  

 

O artista como escafandrista: meditando no azul.

O que há entre o artista e sua obra é uma experiência existencial completa:  envolvimento sensorial e emocional com o mundo onírico e com ideias obsessivas.

As obras de Santangelo revelam a posição do artista dentro do quadro. Sua  “estratégia” consiste em criar um duplo foco: um trampolim para mergulhar e uma estaca para manobrar e voltar à tona.  O artista é sujeito do naufrágio e não um espectador distante. A experiência é o próprio  trabalho: manipulações complexas entre pintura, fotografia, exposições ao sol, colagens, tratamento digital. Ao mesmo tempo, o artista se deixa perder, à deriva, nesse lugar oculto, o cerne de um turbilhão, enquanto escava sua imagem fantasmática.

O Naufrágio está intrinsecamente associado ao simbolismo da Água. Ambivalente como toda a força que vem da natureza, a água pode dissolver e destruir; como pode purificar e fazer renascer. Bachelard, estudando a poética da água, encontra-a tão dessemelhante apesar de feita da mesma matéria: há a água fresca dos riachos; a água turva e estagnada dos pântanos; ondas coléricas; águas pesadas que cedem à força da gravidade, águas aéreas, das nuvens; águas profundas, onde moram fantasmas imperecíveis.

O Naufrágio é só mais uma dessas figurações, ou melhor o centro de um complexo de imagens que sugerem forçosamente uma narrativa oculta, muitas vezes indicada nos títulos atribuídos às obras. Muitos deles, em  primeira pessoa, revelam o envolvimento profundo do artista com seu processo de trabalho  -Quando medito em azul, Navego-me, Invoco, Invoco Pedro - ou indicam uma associação com o Barroco :  Desequilíbrio entre corpos flutuantes, Marés.

Trata-se de explorar um imaginário aquático, marítimo, catalisador de afetos trágicos, provenientes da tristeza, como a depressão, o medo e a melancolia diante do inevitável, diante de uma situação-limite, o ponto sem volta, o enfrentamento da morte.

Entendido como uma alegoria, o naufrágio possui forte vínculo com o Barroco. O Barroco não foi uma revolução apenas nas artes. Foi um movimento cultural inteiro que  emergiu em um momento grave de crise,  uma mudança brusca de mentalidade que revela todo o desencanto do mundo, toda a descrença no Humanismo e em outros valores da Renascença. Na pintura, a perda da posição central da figura, a adoção de novas perspectivas, linhas diagonais, volumes dissimétricos representados em movimento, em fluxos, como forças.

A tensão aparece como uma mutação em todos os agenciamentos de signos. Surgem requintadas formas de ilusionismo - o trompe- l´oeil, o duplo foco -, e estratégias de incluir o pintor na representação, como em Velasquez ou em Zurbarán.

Na pintura de Santangelo, o espaço não está distante nem diante do artista. O artista é englobado pelo espaço. Não o vejo do exterior.

A tensão barroca aparece também nos padrões de construção formal: perda da centralidade; a divisão do quadro entre o alto e o baixo, como em O conde de Orgaz de Il Greco; formações abauladas, arredondadas e espessas das nuvens e das ondas  que podem ser associadas ao paisagismo de Caravaggio, Tintoretto, e, mais tarde, de Turner. São mudanças formais que, acompanhadas de um uso da luz particularmente carregado de significado, alteram a percepção, transformam a sensibilidade do espectador. A luz, importantíssimo indicador para entender o Barroco é também uma fresta para entrar na obra do Santangelo.

Suas estratégias para naufrágios trazem afinidades explícitas com o Barroco. A imagem do naufrágio, arcaica e grave, emerge em momentos de tensão, como no século XVII ou como no nosso século, tempos de crises do sujeito ou catástrofes coletivas.

O artista pinta forças sob as águas, forças leves das superfícies, forças espessas e violentas, que puxam para baixo, que cedem à lei da gravidade. O artista não tem escolha. Ele é obrigado a fazer manobras perigosas, inventar uma maneira de sobreviver. Quem se salva de um naufrágio tem uma história para contar. Santangelo conta a dele por meio de algumas estratégias:

 A escolha de deslocar-se em uma forma elíptica permite estar ao mesmo tempo fora e dentro da representação. Repito essa ideia porque a considero produtiva: a arte como um trampolim e uma  estaca. O artista se torna um escafandrista, um mergulhador, incerto do que vai encontrar, mas buscando no seu sítio arqueológico submarino, relíquias, fantasmas aos quais deve permanecer fiel, a qualquer preço, para ser pinçado por forças ascensionais e voltar à tona trazendo imagens poéticas que redimem o conteúdo trágico implícito no naufrágio e instauram poesia: a luz cambiante das superfícies; a matéria espessa das nuvens prestes a desabar; a força da água que puxa para baixo; a espuma, leve, em ascensão.  Há – por assim dizer – uma transmutação do afeto trágico, implícito na alegoria do naufrágio, em afeto lírico: o artista-escafandrista, salvou-se, é um sobrevivente.

Há outros recursos dos quais o artista lança mão para sobreviver. A escolha do Azul como cor privilegiada. Não qualquer azul, e sim o marinho, ciano. Cor difícil. Nostalgia do mar?

Após essas elaborações complexas para obter as imagens que nos traz, pode-se dizer que estamos diante de Pintura. Pintura pura, em toda a sua potência de estimular – pelo olhar - todos os outros sentidos. Há cheiros de líquens, superfícies ásperas ou escorregadias, sensações de frio ou de dor, ruídos monstruosos, ventos gritando morte, morte, enfim toda a função háptica da pintura, capaz de nos fazer entrar, por meio da retina, em outras dimensões sensoriais.  

Talvez a força da imagem do naufrágio venha dessa capacidade incessante de produzir sentido, essa semiosis contínua, que a torna metáfora para o próprio fazer artístico, a inevitabilidade de saber-se artista. A arte torna-se uma clínica. Pharmakon, veneno e remédio, metaforizando o risco existencial que é ser artista, náufrago e sobrevivente.

Angélica Madeira

Texto de Angélica Madeira sobre a obra do artista

A Poética do Naufrágio –

Reflexões em torno da exposição Estratégias (e manobras) para um naufrágio de André Santangelo

Mini documentário sobre o trabalho de Santangelo

Botão de acesso ao áudio sobre exposiço. O botão é uma foto  um indiano com círculos na cabeça referente à serie "SOMOS"

MiniDoc

Catálogo físico com obras e entrevista

Foto com estante de livros

Catálogo

Veja outras séries produzidas pelo artista

Botão com foto das mãos de Santangelo manipulando duas fotos tamanho 10x10

Séries

Fotopoética e Práticas de ateliê 

Botão com foto das mãos de Santangelo emulsionando papéis para cianotipia. O botão dá acesso a aba "Processos"

Processos

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Botão com imagem do Santangelo conversando com equipe de montagem. O botão dá acesso à janela com descrição da ficha técnica

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